Horas no computador, madrugada adentro, café, chocolate, pausa para uma conversa rápida no “face”, a cabeça em efervescência. E o texto, ao que parece, insiste em não fluir… Não sei se é o nervosismo do “primeiro encontro”, a preocupação com a consistência do conteúdo, a crítica feroz a respeito do próprio trabalho ou a urgência dos prazos (ah, o tempo! Esse, que teima em nos “molestar”). Enfim… Creio que é tudo isso somado ao desejo inconteste de acertar. E, arrogantemente, de acertar logo de primeira, no alvo!
Foi então que resolvi mudar o “rumo da prosa”, isto é, a ideia do meu texto inaugural, e escrever sobre o (árduo e instigante)
processo de criação e sua inserção nos tempos hipermodernos. As questões sobre esse campo têm aguçado, com frequência, os meus sentidos. E já me adianto: essa será, provavelmente, a primeira de uma
série de conversas sobre o assunto. Não tenho a pretensão de oferecer respostas precisas, tampouco definitivas; ao contrário, reflito e problematizo para vislumbrar perspectivas (do latim,
perspicere, que significa “ver através de”), e compartilho minha angústia para prover um pouco de sossego à minha inquietação – uma espécie de escrita-conversa didático-terapêutica.
Ao que me parece, criar é tido, paradoxalmente, ao mesmo tempo como condição sine qua non e impertinência, dado o modo de vida contemporâneo. Segundo Fayga Ostrower, “criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo” e é, portanto, uma atividade que exige estudo, observação, organização, liberdade, reflexão, racionalidade, consciência, experimentação, intuição, espontaneidade, planejamento, tempo para maturação. Algumas dessas ações, no entanto, são incompatíveis com o viver contemporâneo. Refiro-me a contemporâneo como aquilo que é atual, que acontece nesse momento. E o que se configura é uma profusão de modos de viver, num espaço onde se manifestam forças paradoxais, não se encontram referências objetivas e tampouco há um mapa inequívoco de navegação (nem mesmo o GPS se mostra potente!).
Se por um lado vivenciamos uma impecável liberdade e a efetiva dissolução da unidade de pensamento – o que pode ser altamente enriquecedor à criação – presenciamos também uma série de cerceamentos que podem embaraçar o ato criador. É que criar abarca as potencialidades de criação, inerentes ao homem, mas se efetiva dentro da “moldura” de uma determinada cultura. E para além da fluidez, a cultura do tempo contemporâneo é a do tempo presente, dos programas curtos, da mudança incessante da norma, do estímulo para viver e valorizar o imediato. Essas características me parecem, (quase sempre) destoantes do ato e do tempo da criação.
Alguns afirmam que cenários de instabilidade, como os que caracterizam a contemporaneidade – um “ainda não” e um “não mais”, nas palavras de Giorgio Agambem –, podem ser altamente estimulantes e por isso, favoráveis ao processo criativo (me pergunto se a afirmativa não seria uma verdade própria do senso comum). É fato, no entanto, que o excesso de funções e exigências a cumprir e os ambientes marcados por inconstâncias e necessidades prementes tendem a ser condicionantes e, por consequência, esmagadores do potencial criador.
Reprodução
Não me entendam mal. Não estou fazendo alusão à criação como algo da esfera do “etéreo” e do “sagrado”, descolada da realidade. Até porque criar só é possível como um agir integrado ao viver humano. O que me perturba é pensar na possibilidade de estarmos desenvolvendo uma pseudocriatividade, estimulada pelas necessidades dos frenéticos ritmos contemporâneos, e assim nos acomodarmos, nos acostumarmos aos produtos “pasteurizados”, “esterilizados”, repletos de “conservantes e aromatizantes”, sob o rótulo de adequados às características dessa sociedade. Tal risco é iminente quando se opta por viver num compasso que quase ultrapassa (se é que já não ultrapassou) o ritmo orgânico. Acredito que isso é viver potencialmente alienado de si e das possibilidades criativas.
Por Clícia Machado
